Em 1971, o misterioso Tigre enfrentou o Dragão no Victório Scuro

Por Gabriel Pitor Oliveira
A cidade de Americana parou em 14 de novembro de 1971 para acompanhar um dos cotejos mais inusitados da história do futebol da Princesa Tecelã. No lendário - e ainda vivo - estádio Victório Scuro, o Esporte Clube Vasco da Gama, conhecido como Vasquinho da Conserva, enfrentou o Rio Branco Esporte Clube, o Tigre da Paulista. Era a história acontecendo e desenhando um dos fatos mais inusitados de todos os tempos. Porém, antes de contar todos os mistérios acerca desse grande jogo, é preciso apresentar os times.

Vasco e Rio Branco até 1971


Esporte Clube Vasco da Gama

Fundação: 07/02/1958
Presidente: Amasilio Scoriza
Alcunhas:
Vasquinho 
Vasquinho da Conserva
Dragão da Conserva
Cruzmaltino Americanense
Estádio: Victório Scuro ("Caldeirão do Dragão")
Torcedor: cruzmaltino ou vascaíno
Mascote: Dragão
Rivais: Flamengo de Americana, União Barbarense e Pirassununguense
Situação: Disputava a Primeira Divisão (equivalente a segunda divisão paulista) e torneios complementares no segundo semestre, como o Torneio da Primavera 1971.
Principais títulos e feitos notáveis:
- Campeão da Segunda Divisão (equivalente a terceira divisão paulista) de 1968.
- Bi-campeão da Taça Amadeu Elias.
Rio Branco Esporte Clube

Fundação: 04/08/1913
Presidente: Délcio Dollo
Alcunhas: 
Tigre
Tigre da Zona
Tigre da Paulista
Tigre de Americana
Alvinegro Americanense
Alvinegro Imponente
O Campeão do Centenário
Estádio: na época, nenhum (futuramente Décio Vitta)
Torcedor: riobranquense
Mascote: Tigre
Rivais: União Barbarense, XV de Piracicaba, Guarani, Ponte Preta, Inter de Limeira e Carioba.
Situação: Departamento de futebol desativado (impasse).
Principais títulos e feitos notáveis:
- Bi-campeão Paulista do Interior em 1922 e 1923.
- Campeão do Centenário da Independência do Brasil 1922.
- Vice-campeão Paulista (Taça Competência) em 1922 e 1923.
- Tri-campeão da Zona Paulista em 1921, 1922 e 1923.
- Vice-campeão do Interior em 1921.
- Principal fundador da "Lei do Acesso" e dos campeonatos de base.



A batalha no Victório Scuro
Vasco da Gama e Rio Branco acertaram um amistoso para o dia 14 de novembro de 1971 no estádio Victório Scuro, conhecido como "Caldeirão do Dragão". O confronto pegou de surpresa a todos da imprensa americanense, uma vez que o Tigre da Paulista estava com o seu departamento de futebol desativado. O cruzmaltino americanense havia terminado de disputar, sete dias antes, o Torneio Quadrangular da Primavera composto por Vasco, Pinhalense, Pirassununguense e Mogi Mirim. Lanterna da competição com apresentações horrorosas, o Dragão da Conserva pretendia desistir de disputar novos amistosos. 

Soou estranho quando a diretoria vascaína anunciou o amistoso, especialmente pelo fato do adversário ser o Rio Branco, clube que não apresentava seu futebol pelos gramados do interior paulista desde 1959, ou seja, 12 anos atrás. Com a "volta" do Tigre vários burburinhos começaram a correr na Princesa Tecelã e muitos acreditavam que o alvinegro retornaria ao futebol profissional - o que para o Vasco seria uma ameaça -. Nada disso. Foi um jogo esporádico. Algo momentâneo apenas para a torcida americanense apreciar e matar saudades do Rio Branco, clube que deu as maiores glórias para a cidade. 

Porém, ainda há muitos mistérios acerca desse jogo e apresentaremos mais abaixo. Afinal, era intensão mesmo do Tigre voltar ao futebol? O time que jogou veio da onde? Quem levou a camisa riobranquense? Como o Vasco encarou esse amistoso? Perguntas sem repostas até hoje e que serão entendidas no decorrer da matéria. 

Além de todas essas dúvidas e do jogo soar estranho, hoje o grande confronto soa como alternativo e inusitado. O Rio Branco enfrentou um time que, entre aspas, viria a ser ele. Vale lembrar: o Vasco foi fundado em 1958, mas em 8 de fevereiro de 1976, em assembléia realizada na sede vascaína, mudou-se de nome para Americana Esporte Clube. O mesmo Americana que, em 1979, faria uma fusão não-incorporada com o Rio Branco, trazendo o Tigre da Paulista de volta ao futebol. Entendeu? O Vasco enfrentou o Rio Branco em 1971, o mesmo time que o mesmo Vasco ajudaria a voltar ao futebol em 1979. Mais que inusitado, é história! 

Agora, vamos falar do grande prélio. Em campo, o verdadeiro "dérbi" de dois times gloriosos: o Vasco da Gama, na década de 60 e 70, levou o nome de Americana no cenário estadual com boas campanhas, título e se tornando o primeiro time da cidade (na época); quem perdeu esse posto foi justamente o Rio Branco que estava com o seu futebol desativado, mas que levou - e muito bem - o nome da Princesa Tecelã no futebol estadual e, até mesmo, nacional de 1913 a 1959. O alvinegro entrava em campo gabaritado com o bi-campeonato do interior, com os dois vices estaduais e com o "Campeão do Centenário" (alusivo ao Centenário da Independência do Brasil em 1922). Era o melhor time de Americana de todos os tempos e um dos maiores times do interior brasileiro - até hoje -, o Rio Branco, contra o melhor time da cidade em duas décadas, o Vasco.

Vale aqui fazer uma observação: o Rio Branco, sem qualquer sombra de dúvidas, é o maior time da cidade desde 1913; o Vasco, certamente, é o segundo maior. Há muita contestação quanto a posição do Dragão da Conserva no patamar americanense, já que Carioba e Flamengo "reivindicam esse segundo posto". O Cacique do Machadinho (Flamengo), com todo respeito, jamais chegou aos pés e nem mesmo tem as conquistas do Vasco. O Carioba, apesar de ser bem mais velho que o cruzmaltino, nunca passou de glórias municipais. O Vasco da Gama se credenciou a segundo time histórico da cidade quando entrou no profissionalismo, enfrentou com astúcia tradicionais times interioranos e, por fim, se sagrou campeão da terceira divisão estadual em 1968. 

O pré-jogo do jornal O Liberal do dia 13 de novembro de 1971 fala da grande expectativa para o cotejo no Victório Scuro. 

O Liberal de 13 de novembro de 1971 | Tigre ou Dragão? Resposta amanhã
em Victório Scuro

Transcrição da matéria
"Depois de tanto tempo voltamos a noticiar partidas do Rio Branco Esporte Clube, agremiação que chegou a conquistar títulos no interior do Estado em épocas passadas, culminando por ser proclamado "campeão do centenário".
Quanto ao noticiário do Vasco da Gama não é novidade para ninguém, pois de uns tempos a esta data é o Dragão que vem representando o futebol profissional da Princesa Tecelã, conquistando também um título notável qual seja, campeão da segunda divisão de profissionais da Federação Paulista de Futebol, em memoráveis campanhas desenvolvidas em campos de Bauru e Araraquara. 
Claro que estamos comentando o que será a partida programada para a tarde de amanhã no estádio Victório Scuro, quando estarão frente a frente as equipes do Rio Branco e do Vasco. 
O Dragão é sobejamente conhecido da platéia americanense, mas o Tigre é uma incógnita, pois essa será sua primeira apresentação com mais pompa perante a torcida local.
Um troféu foi colocado em jôgo, mas a equipe que pretender ficar com êle em definitivo precisará vencê-lo numa disputa de melhor de três pontos. A primeira partida será jogada amanhã; a segunda peleja está marcada para o dia 13 de junho do próximo ano, e, havendo necessidade de uma terceira porfia esta acontecerá no aniversário de nossa cidade, em novembro. 
Muito mais pela expectativa reinante, pela tradição das esquadras litigantes, que pela qualidade técnica do espetáculo, espera-se a presença de um grande público para prestigiar tal acontecimento. 

Ado e Paulo Borges participam da festa
Na partida preliminar estarão jogando as equipes juvenis do São Domingos, campeão da cidade, e do São Vito, ocasião em que os comandados de Orlando Cremasco receberão as faixas de campeões.
Comandará essa festa o arqueiro Ado, pertencente ao Esporte Clube Corinthians Paulista. Também Paulo Borges deverá estar presente e possivelmente jogando por uma das esquadras de fundo."

Às 12h do dia 14 de novembro de 1971 os portões do estádio Victório Scuro foram abertos. Os primeiros torcedores começaram a chegar para acompanhar a preliminar e o grande cotejo entre Rio Branco e Vasco. 

Às 12h30, iniciou-se o jogo entre as equipes juvenis do São Domingos e do São Vito. 

Às 14h30, após o encerramento do jogo preliminar, a agremiação juvenil do São Domingos recebeu as faixas de campeão da cidade. Fotos foram tiradas para registrar o momento. 

Às 15h10, o onze riobranquense pisou no gramado do Caldeirão do Dragão. Muitos torcedores riobranquenses acompanhavam a partida e entraram êxtase quando o Tigre adentrou ao gramado. Um dos rojões acabou por atingir um torcedor que teve ferimentos leves. A torcida alvinegra foi reforçada pela Escola de Samba Tropicália e Salvação, o que deixou a torcida vascaína admirada pelo barulho dos riobranquenses. Havia mascotes, bandeiras alvinegras e muitos diretores do Rio Branco. Uma das bandeiras estava localizada no meio da Escola de Samba e carregava o brasão de Campeão do Centenário da Independência do Brasil. 

Às 15h18, o onze cruzmaltino entrou em campo diante de aplausos e gritos da torcida vascaína. A platéia do Vasco da Gama, mesmo em igual ou menor número que os riobranquenses, fez sua festa com os gritos de "Vascooo, Vascooo...". 

Às 15h25, após todos os preparativos, o veterano Virgílio Braga, um dos craques que foi bi-campeão do interior e bi-vice-paulista pelo Rio Branco, foi homenageado, dando o pontapé inicial e recebendo o cumprimento de toda a platéia presente no Victório Scuro.

Às 15h30 do dia 14 de novembro de 1971 rolou a bola no Victório Scuro. Tigre e Dragão iniciavam 90 minutos históricos para o futebol americanense. 

O Rio Branco não apresentou bom futebol e sucumbiu diante do Vasco da Gama. A esquadra alvinegra mostrava-se bem abaixo da esquadra cruzmaltina, demonstrando que o onze do Tigre não estava a altura de suas tradições - algo já esperado -. Ainda no primeiro tempo, o Vasco marcou dois gols: Sérgio Morais e Sérgio Rosa anotaram os tentos. 

No segundo tempo, o futebol caiu de nível até mesmo para o lado do Vasco. O Rio Branco, com um time fraco, não teve poder de reação. Coube, então, ao Dragão da Conserva conquistar vitória por 2 a 0 em um jogo que não agradou a platéia presente, apesar de ter sido histórico. 

Abaixo o relato do jornal O Liberal de 18 de novembro de 1971. 

Vasco da Gama 2x0 Rio Branco | Volta do Tigre não assustou Dragão

Transcrição da matéria
"Domingo passado teve futebol em Victório Scuro, com a tão esperada volta do Tigre da Paulista aos campos de futebol. Foi o jôgo Vasco x Rio Branco. A torcida riobranquense compareceu em número regular, levando para o estádio uma bateria e muitos rojões. Os vascaínos estiveram presentes para ver seu time enfrentar os riobranquenses.
Quando o Tigre entrou em campo, sua torcida comemorou ruidosamente. Um dos rojões acabou por atingir inclusive um torcedor que, felizmente, teve pequenas escoriações. Havia mascotes, bandeira, e muitos dirigentes alvi-negros. 
Antes do início da partida o veterano Vergílio Braga foi homenageado, dando o pontapé inicial. Depois veio o jôgo, com a saída pertencendo ao Vasco, através de Bonitão. 
O jôgo em si não chegou a agradar a platéia presente, pois o Rio Branco, embora conte com grande prestígio, afinal é o clube de tradição e muitas glórias já deu a nossa cidade em outras datas, não esteve representado por uma equipe a altura de seu nome. A propaganda foi maior que o produto.
O Vasco por seu turno, acabou se portando melhor sem, contudo, apresentar-se maravilhosamente. Jogou o suficiente para, no primeiro tempo, marcar dois gols, e acabar ganhando a partida pela contagem de 2x0. 
Sérgio Morais e Sérgio Rosa fizeram os gols. 
O juiz da contenda foi Carlos Batista Barbosa, auxiliado por Sidnei Sasse e Paulo Camargo Neves. 
A arrecadação foi Cr$2.000,00, sendo que coube ao Rio Branco 30%."

Boletim do Rio Branco de 1971 fala sobre o jogo, mas comete alguns equívocos como a data
do confronto. Torcida do Tigre em destaque. | Acervo Claudio Giória

O onze alvinegro e o onze cruzmaltino | Boletim do Rio Branco 1971
Acervo Claudio Giória

A torcida que acompanhou o histórico jogo em Victório Scuro | Boletim Rio Branco 1971
Acervo Claudio Giória

Ficha técnica de Vasco 2x0 Rio Branco
Jogo: Esporte Clube Vasco da Gama 2x0 Rio Branco Esporte Clube
Local: Estádio Victório Scuro - 15h30
Gols: Sérgio Morais - 1x0 Vasco; Sérgio Rocha - 2x0 Vasco
1º tempo: Vasco 2x0 Rio Branco
Final de jogo: Vasco 2x0 Rio Branco
Renda: Cr$2.000,00 (Cr$600 foram destinados ao Rio Branco)
Público: Aproximadamente 800 pagantes e menores
Árbitro: Carlos Batista Barbosa
Auxiliares: Sidnei Sasse e Paulo Camargo Neves
VASCO DA GAMA (4-2-4): Carlinhos; Serginho, Adalberto, Cido e Pedrinho; Sérgio Morais e Dião; Hélio, Guaçu, Sérgio Rosa e Du.
RIO BRANCO (4-3-3): Nenê; Zé Carlos (Luizinho), Wagner (Coutinho), Menegatte e Zé Antônio; Mora, Migo (Kiko) e Luizinho (Wiltinho); Sidnei (Zapia), Zili e Caldeira.

O onze riobranquense - Mistério!
Mas afinal, se o Rio Branco estava com seu departamento de futebol desativado da onde surgiu o elenco alvinegro? Este é o grande mistério acerca do jogo. Não porque não é conhecido a origem dos atletas, mas sim, a curiosa origem dos jogadores. 

O Tigre da Paulista foi representado, no jogo contra o Vasco, pelo Cultura Fantasma, um time amador de Americana e que disputava campeonatos regionais e estaduais. E qual é o mistério nisso? A origem do Cultura Fantasma. 

Em um dos boletins do clube, diz o seguinte: 

Arquivo Claudio Giória

Transcrição do trecho
"FUTEBOL DE CAMPO: - O FANTASMA ERA UM "TIGRE" INVICTO. 
Fantasma foi de "grupo" para não assustar os mais sensíveis, pois falar que era RIO BRANCO já de "cara" poderia estragar a "saúde" de muita gente. Com o tempo todo mundo ficou sabendo que o FANTASMA que "assombrava" a cidade com 28 partidas invictas era o RIO BRANCO E.C., um esquadrão de futebol arte e malícia. Desde o retorno ao futebol até a presidente data não sabemos o que é perder e do jeito que a coisa vai, será difícil acontecer tão já. Futebol sempre foi o nosso forte e quando jogamos a turma respeita a tradição do clube mais querido da cidade"

Com esse trecho podemos destacar algumas partes curiosas como "Fantasma foi de "grupo" para não assustar os mais sensíveis, pois falar que era RIO BRANCO já de "cara" poderia estragar a "saúde" de muita gente" e "Com o tempo todo mundo ficou sabendo que o FANTASMA que "assombrava" a cidade com 28 partidas invictas era o RIO BRANCO E.C". Com esses trechos, supostamente, o Cultura Fantasma era o Rio Branco com outro nome. Essa teoria é reafirmada quando o boletim diz que "desde o retorno ao futebol até a presente data não sabemos o que é perder...". O Rio Branco voltou ao futebol como Cultura Fantasma e ninguém desconfiava. 

Se isso realmente fosse confirmado, cairia por terra o conhecimento histórico de anos que o Tigre parou o seu futebol em 1959 e voltou somente em 1979 em uma fusão não-incorporada com o Americana Esporte Clube (ex-Vasco da Gama). 

Outro boletim do Rio Branco reafirma a tese acima:

Arquivo Claudio Giória

Transcrição do 1º e do 4º trechos:
"A reeleição da chapa "O Tigre Voltará", quer dizer a continuidade das promoções do triênio que passou, como também, da construção do nosso futuro estádio poli-esportivo"

"A equipe que jogava com o nome de Cultura Fantasma, era o esquadrão em testes, do Rio Branco E.C., e passou muito bem por eles, pois já soma 28 partidas invictas. 
Nestas condições, desapareceu o "Fantasma" e ressurgiu o novo Rio Branco em nossos gramados."

Primeiro vem uma chapa de eleição com o nome "O Tigre Voltará", certamente se referindo ao futebol e à futura construção do estádio Riobrancão. Depois, mais um indício: "o Cultura Fantasma, era o esquadrão em testes, do Rio Branco E.C." Segundo o boletim, o time era do Tigre da Paulista. 

Segundo o historiador Claudio Giória, o Cultura Fantasma era formado por sócios do Rio Branco o que reforça (ou o contrário) a tese de que o time era o Tigre "mascarado" pelo interior. 

Arquivo Claudio Giória

Por fim, mais um fato que aumenta o mistério: se o departamento de futebol estava desativado, por que ainda era noticiado nos boletins do Rio Branco (como mostrado acima)? Acima fala-se do Cultura Fantasma e suas pequenas glórias. 

O Liberal de 7 de dezembro de 1979
O jornal O Liberal, em 7 de dezembro de 1979, faz uma matéria especial sobre a década de 70 do esporte americanense, destacando os principais acontecimentos. Dentre eles, em 1971, está destacado o grande confronto entre Rio Branco e Vasco. Nele, um trecho diz que o jogo foi "numa tentativa esporádica de volta do Tigre ao futebol através da formação de uma equipe amadora". Aumentou-se as suspeitas acerca do departamento de futebol riobranquense. Porém, o historiador Claudio Giória atenta: "Isso é um indicativo ruim. Pelo seguinte. A história contada anos depois, infelizmente, muda. E isso não apenas antigamente, mas hoje. Quantas besteiras sobre o Rio Branco, por exemplo, não foram perpetuadas pelos jornais ao longo de décadas."

O jogo contra o Vasco puxou várias perguntas: o Rio Branco pretendia voltar ao futebol caso vencesse o Vasco? Cultura Fantasma era o Rio Branco com outro nome disputando campeonatos amadores pelo estado? Ou o Cultura era apenas um time jogando, emprestadamente, com a camisa do Tigre? Questões que o boletim do alvinegro diz uma coisa, mas a prática diz outra. É o eterno mistério acerca desse jogo e do departamento de futebol do Rio Branco supostamente desativado na década de 70. Respostas que não serão respondidas tão cedo. 

O que os historiadores dizem sobre o "Cultura Fantasma" e os boletins do Rio Branco
Claudio Giória é historiador do Rio Branco Esporte Clube e tem um material quase pronto que revela toda a história do Tigre desde 1913. Gabriel Pitor é historiador do Rio Branco, do EC Vasco da Gama e do Americana EC, e já publicou o "Acervo de Jogos" (com todos os jogos no profissionalismo) e o "Acervo Histórico" do alvinegro americanense. 

Foram algumas semanas em que os dois historiadores trocaram e-mails discutindo a origem do Cultura Fantasma e ambos levantaram duas teses que, apesar de plausíveis, não podem ser adotadas, uma vez que há um grande impasse sobre o assunto e apenas alguém vivo da época poderia confirmar com maior autoridade. 

Versão Claudio Giória
"Veja que os textos são confusos, mas pelo que dá para entender, existia um clube em Americana chamado Cultura Fantasma que sabe-se lá porque começou a jogar com a camisa do Rio Branco. Completamente amador em uma época que o futebol era completamente profissional. O que parece - e é reforçado pela total ausência de cobertura pelos jornais de Americana da época - é que como o Rio Branco não tinha futebol, um clube amador resolveu "emprestar" a camisa do clube. Daí a considerar que de fato é o Rio Branco em campo vai uma larga diferença, a não ser que tenhamos "fatos novos".

Repare que a chapa que venceu a eleição daquele ano, com esse time em plena atividade, tinha o nome de "O Tigre Voltará". Completamente contraditório.

A única "cobertura" de um jogo é justamente esse contra o Vasquinho, muito provavelmente porque era contra o principal clube da cidade à época, com foto e tudo mais. Mas repare que não existe qualquer menção (e também nos informativos posteriores ou anteriores) de que o Rio Branco estava de fato tentando retomar o futebol (aí o Liberal conta essa história anos depois e acrescenta uma informação que a gente não sabe de onde tirou). Diante desse quadro todo, polêmico admito, resolvi adotar esse critério de não considerar esse Cultura Fantasma o Rio Branco só porque em determinado momento, teria passado a jogar com a camisa do Rio Branco, meio que do nada.

Com a construção do estádio caminhando e todos no clube vivendo isso, se o Rio Branco tivesse tentando se reorganizar para voltar, acho muito difícil que isso não ganhasse espaço na imprensa e mesmo no boletim do clube. Tem uma menção em um boletim de 1974 que embora com o futebol parado "há anos", a construção do estádio seguia.

Tenho marcado em outro lugar que o Cultura era formado por sócios do Rio Branco. Mais um indício que um grupo formou um time e "do nada", passou a jogar com a camisa do Rio Branco emprestada, afinal eram sócios do clube e não tinha futebol mesmo (volto a repetir que o Rio Branco sempre tratou seu departamento de futebol nesta época como desativado). Não li em lugar algum ao longo dos anos, qualquer indício que fosse - e nem ouvi de pessoas com quem falei - algo que pudesse indicar algo na linha da teoria de Gabriel Pitor. Acho que a chance de "algo disfarçado" é praticamente zero em pleno anos 70. O Jota, que viveu muito essa época e sabe muito, crava o fim do futebol do Rio Branco após a venda do campo da Fernando de Camargo, em 1959, e a volta em 1979 (ele inclusive deu uma entrevista pra mim dizendo que nos anos 70, participou de um debate na Rádio Clube com a diretoria do Rio Branco sobre a volta do futebol, mas a maioria era contra por causa dos gastos). Existia uma corrente muito forte no clube contra a volta do futebol. O Jairo Camargo Neves, outro que viveu essa época, nunca mencionou nada sobre esse Cultura. O Délcio Dollo já morreu.

Seria legal se fosse uma iniciativa do Rio Branco voltar, mas acho pouquíssimo provável. Porém, é tudo achismo."

Versão Gabriel Pitor
"Nos textos, "O Fantasma era um "Tigre" invicto" e nas "Notícias Breves", deram a entender que o Rio Branco bancava esse "Cultura Fantasma". Era o Tigre jogando os campeonatos amadores com um outro nome, com um nome "escondido", sem dar na cara que era o próprio Rio Branco, talvez para não causar muito alarde e uma pressão para que o time voltasse ao futebol profissional - algo que custaria muito mais aos cofres do clube. Cultura Fantasma não era um outro time, era o Rio Branco, jogando com um nome diferente. Foi isso que deu a entender dos boletins. Cultura Fantasma me parece ser sim o Rio Branco, e não apenas um time que emprestou a camisa. As duas partes que mais evidenciam que o Cultura era, de fato, o RB, são essas: "Com tempo o todo mundo ficou sabendo que o FANTASMA que "assombrava" a cidade com 28 partidas era invictas era o Rio Branco E.C." e "A equipe que jogava com o nome de Cultura Fantasma, era o esquadrão de testes, do Rio Branco E.C.". Acho que as partes que eu destaquei no texto dão um tom de certa forma convincente de que era o Rio Branco. Nos dois textos eles noticiaram da mesma forma: o Cultura Fantasma era o Rio Branco "mascarado".

Para explicar a minha teoria de que o Rio Branco usava outro nome para não causar alarde, uso o panorama do Vasquinho. O Vasco, apesar de ser o primeiro time da cidade na época, encontrava muitas dificuldades financeiras. Quem bancava o time era Coletta (aliás, ex-jogador do Rio Branco). Mesmo assim, o apoio da cidade era muito restrito, muito fechado. Até mesmo a torcida vascaína não levava bons públicos ao Victório Scuro. E os cartolas vascaínos eram amigos de cartolas riobranquenses - aliás, alguns eram diretores de ambos os times. Imagine o seguinte cenário: Vasco quebrado; Rio Branco começa a jogar o campeonato amador com o seu nome real, ou seja, Rio Branco; o estádio alvinegro estava sendo projetado - obviamente, iria surgir em Americana um movimento muito forte em torno da volta do Tigre ao futebol profissional e contando com apoiadores da cidade, o que culminaria na extinção do Vasco de Americana. Aliás, outra coisa maluca: se realmente o Tigre tinha intenção de voltar ao futebol caso vencesse o amistoso contra o Vasquinho, o Dragão da Conserva jogou pela sua sobrevivência nesse amistoso. Se o Rio Branco voltasse, era o fim do Vasco. Influência por influência, o Tigre tinha muito mais para conseguir apoio do que o Vasco - que já estava quase falido e depois tentou uma estratégia furada de mudar o nome para Americana EC. Pensando em tudo isso, o Rio Branco usou o nome "Cultura Fantasma", escondido, para não causar alarde, para não haver pressão por volta, para não fazer a besteira de voltar antes de estar realmente preparado para isso. E, evidentemente, para não criar uma força somente em torno do Tigre, deixando o Vasco marginalizado e mais próximo ainda da falência.

Não vou concluir. Vou deixar em aberto. Mas, com esses boletins, reforça a minha ideia de que esse Cultura é o Rio Branco jogando o amador com outro nome. Imagine que você tenha uma empresa com nome X, mas você se inscreve em um campeonato com um nome Y. Esse é o paralelo tênue entre Rio Branco e Cultura Fantasma. O futebol do alvinegro continuou existindo, mas com outro nome para não causar grande alarde nos amadores americanenses."

O Vasco no Victório Scuro
Perder para o Vasco no Victório Scuro não é nenhum absurdo. O "Caldeirão do Dragão" era, de fato, um caldeirão para os seus adversários e alguns dados comprovam isso. 

VASCO NO VICTÓRIO SCURO (EXCLUINDO-SE O AEC E AMISTOSOS)
Jogos: 96
Vitórias: 55 (57,3%)
Empates: 24 (25%)
Derrotas: 17 (17,7%)
Gols pró: 166
Gols contra: 87
Maior vitória: 08/09/1968 - Vasco 6x0 Rio Branco de Ibitinga | 06/10/1968 - Vasco 6x0 Amália
Maior derrota: 01/06/1975 - Vasco 1x4 Independente
Times que não perderam para o Vasco em Victório Scuro: São Carlos Clube, Noroeste, Ponte Preta, Botafogo/SP, Rio Claro e Independente
Alguns times que já foram derrotados pelo Vasco em Victório Scuro: Amparo AC, Oeste de Itápolis, Santo André, Bragantino, Nacional, Francana, Esportiva Guaratinguetá, Velo Clube, Ginásio Pinhalense, Sertãozinho, União Barbarense e Araçatuba. 
Time que mais vezes venceu o Vasco em Victório Scuro: São José (3)
Times que mais vezes foram derrotados pelo Vasco em Victório Scuro: Esportiva Guaratinguetá, Nacional e União Barbarense (3)

- O Vasco ficou três anos invictos em seu estádio. Neste tempo, 26 jogos aconteceram: 23 vitórias e 3 empates, sendo 79 gols marcados e 17 sofridos. A invencibilidade começou em 19 de junho de 1966 na vitória por 1 a 0 sobre o Araras CD e terminou em 06 de julho de 1969 na derrota por 2 a 1 para o São Carlos Clube. 
- Outra grande invencibilidade engloba 20 jogos: começando por uma vitória no dia 18 de março de 1973 por 2 a 0 sobre o São José e encerrando no dia 16 de junho de 1974 na derrota para o Rio Claro por 2 a 0. Neste período, foram 13 vitórias e sete empates, sendo 32 gols feitos e 12 sofridos. 

O Rio Branco após o jogo contra o Vasco
Não há notícias sobre o esquadrão riobranquense após a derrota para o Vasco. Se realmente o Tigre tinha a intenção de voltar ao futebol com uma vitória sobre o Dragão da Conserva esses ânimos esfriaram. 

Os jogos entre Rio Branco x Vasco que estavam programados para o ano seguinte em suposta disputa de taça não foram realizados, dando tons de "desaparecimento" do Cultura Fantasma.

CRÉDITOS
Matéria feita por Gabriel Pitor Oliveira. Muitos dados aqui relatados são do acervo de Gabriel Pitor Oliveira. Colaborações de Claudio Giória e Caio Pires Ribeiro. 

2 comments:

  1. Belíssimo post, eu tenho um relato do Cultura Fantasma que tinha um bestial time de Futebol de salão e ganhou o municipal em cima do Benfica que era o time do Deposito de Bebidas do saudoso Heitor Travaglia, esse jogo final realizou -se na extinta quadra do Veslam próximo ali da Rua Carioba e deve ter sumula e tudo na LaF, preciso verificar. Só não posso concordar com a pouca importância dada ao Clube Recreativo e Esportivo Carioba, sobre o qual eu quero escrever ainda .

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    1. Grande, Marcelo!
      Qualquer material do Cultura Fantasma é bem-vindo. Quando tiver em mãos ou escaneado, gostaria muito de ver, ainda mais agora com essa ligação histórica com o Rio Branco. Aliás, você adicionou mais um fato curioso: o Tigre, na época, tinha um time muito forte de futebol de salão também. Será que o cultura fantasma é o Rio Branco? Dúvidas que ficarão por décadas, já que ninguém pode nos responder. Mas enfim, quando tiver o material, me envie. Importantíssimo esse resgate sobre o Cultura Fantasma.

      Sobre o Clube Recreativo e Sportivo Carioba: não que ele tenha pouca importância (até porque, fez parte do nascimento do futebol na Princesa Tecelã e da primeira rivalidade com o Rio Branco), mas não acredito que tenha maior importância que o Vasco da Gama. A saga cruzmaltina é simplesmente fantástica, veja só:
      - Nasceu como um time de bairro e jogando em um campinho de bairro.
      - Virou um dos mais vencedores times amadores de Americana.
      - Entrou no profissionalismo em 1966.
      - O seu campinho na Conserva virou um caldeirão: o Victório Scuro, em 1967. Aliás, se tornando um time quase imbatível com seu mando de campo.
      - Voltou a projetar o futebol de Americana no cenário estadual (algo que não acontecia desde o Rio Branco) ao ser campeão da Terceira Divisão paulista de 1968.
      - E até 1975 enfrentou com muita astúcia times tradicionalíssimos do futebol paulista como Inter de Limeira, Paulista de Jundiaí (nunca perdeu), Botafogo de Ribeirão Preto, Comercial...
      Infelizmente, o Carioba, quando militou no profissionalismo por dois anos, não teve o mesmo sucesso. Repito: não que o Carioba tenha pouca importância - longe disso -, mas não acredito que tenha maior importância que o Vasquinho.

      Abraço!

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